sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Um dia no Rastro de Madri - tralhas e liçoes

(o famoso "013")

("013" com Lope de Vega debaixo do braço e a cerveja na mao)

(tapas do El Capricho Extremeño)


Há umas semanas atrás, fui ao Rastro, a mais famosa feira popular de Madri, que se ergue sacrossantamente todos os Domingos pelas ruas do bairro La Latina, especialmente na Calle Ribera de Curtidores. Um mercado ao céu aberto onde se vende de tudo: roupas novas e usadas; livros novos e usados; sapatos novos e usados; estranhezas variadas, como pregos antigos, cadeiras velhas, pratos velhos, enxadas velhas, e toda sorte de bizarrices antigas.

De qualquer forma, é um lugar fantástico pra se encontrar personagens dos mais diferentes tipos e cores. E foi o que aconteceu nessa ocasiao.

Depois de muito andar, sentado numa pracinha, devorando umas “tapas” do famoso bar El Capricho Extremeño, eis que se me aproxima uma figura que, à primeira vista, era um simples “meoteiro”, desses que já têm os pes inchados de tanto beber. Achou que eu era árabe (coisa muito frequente aqui). Explicou que eu lhe fizera lembrar dos parentes distantes que viviam no leste da Arábia Saudita. Ele, na verdade, era marroquino, mas tinha esses tais parentes por lá.

Bom, bastou esse “approach” pra que se iniciara ali a mais interessante conversa que jamais podia esperar. Durante mais de 3 horas seguidas falamos de cinema, de história, de literatura, e até de matemática (eu, finalmente, entendi o significado do zero). História da dominaçao moura na Península Ibérica e o seu legado na língua, na arquitetura e na cultural em geral; a colonizaçao africana, em especial do Marrocos; a guerra civil espanhola; o terrorismo, a religiao islâmica....tudo passou ao crivo de sua análise e visao críticas.

Entrecortava a conversa, às vezes, com instantes de aparente absentismo, ausência, dizendo coisas típicas de ébrios. Nao obstante, conservava firme a linha fina, sutil e delicada que ainda o mantinha preso à lucidez.

Entre uma história e outra, tomava um tempo pra ir buscar uma cerveja, um cigarro, um pao...coisas que eram sempre repartidas com um estranho (também “borrachito”) que havia se incorporado ao papo.

Nenhuma palavra de si mesmo, de sua história, dos seus dramas, de sua vida, enfim. Nem uma sequer, nem mesmo o seu nome. “Me llamo como quieras tu que yo me llame”. Eu, para ver se arrancava essa informaçao, tentava irritá-lo, chamando-o por um nome diferente a cada instante: Mohamed, Ahmed, Omar, Samir, Mahmud.

“Chaval, un nombre es simplemente una sucesión de sonidos interconectados. Solo eso. Dame tu el sustantivo que crees que merezco o que, efectivamente, representa lo que soy”.

Diante do meu silêncio assombroso e conivente com o que acabara de ouvir, ele arremadou, rompendo com a sobriedade que lhe invadira: “....aunque me gusta que me llamen de 013”.

Antes que eu pronunciasse meu inevitável “por quê?”, ele interveio: “é o número do único documento que tenho: uma ficha na polícia”. E riu efusivamente.

E, assim, passaram as horas: o povo foi saindo, a praça se esvaziou, as barracas foram desmontadas e o pessoal da limpeza já lavavam as ruas. Era hora de me despedir de “013”.

Antes de me saudar, juntou todas as tralhas que trazia consigo (pra vender, claro! Afinal estava no Rastro), e deixou pra o caminhao do lixo recolher. Apenas ficou com.... a cerveja e o cigarro? Nao. Um livro. Aliás, um grande livro. E nao um “grande livro” qualquer, mas um “grande livro” do igualmente grande Lope de Vega!

A última imagem que tenho dele foi a dos gritos que começou a dar na direçao de alguém que o havia provocado/insultado. Descontrolado, enfurecido, cambaleante, repetia incessantemente o mesmo bordao, revelador da lucidez de sua loucura momentânea: “Para vivir no basta con tener cojones. Hacen falta razones.¡Joder!”

E lá fui eu, sisudo e introspectivo, em direçao ao metrô de Puerta de Toledo, com aquela frase ecoando na cabeça: “Para vivir no basta con tener cojones. Hacen falta razones”.

Por detrás de toda estranheza ou loucura de um homem, se escondem sempre a grandeza ou a pequeneza, a fortaleza ou a fraqueza, a alegria ou a tristeza, o prazer ou a dor, a transcendência ou a imanência da nobre e miserável condiçao humana e todas suas vicissitudes.

E viva “013”!
(Soube depois que "013" veio do Marrocos há mais de 20 anos atrás. Formou-se em engenharia, mas, por alguma circunstância desconhecida, perdeu tudo e todos. Diz-se que sua família é antiga nobreza marroquina, da mesma linhagem do atual rei Mohamed VI).

(Imagens do Rastro de Madrid)


Um comentário:

Anônimo disse...

Estava eu, displicentemente, pesquisando sobre uma campanha publicitária e acabei por parar em um local até então absolutamente desconhecido. Li a falta de pretensão do autor, li sobre o título do blog e vi o Brasil nos jornais do mundo! Descobri que o mentor da idéia é baiano(como eu) e, como se não bastasse, descobri o “013”! Enfim, achei o blog muito bom. O “013” me fez lembrar Estamira... Passarei por aqui mais vezes...